Dizem que aqui há muito tempo, mas como conceito o tempo é absolutamente subjectivo.
Sobretudo no mês que passou, em que não fiz entradas no blog, porque andei a digerir um acontecimento que me marcou profundamente, e pela negativa.
A Felizmina, que passa o dia a rezar, que é pilar da sua igreja, que é tão ignorante quanto teimosa, e que eu por gostar bastante dela vou aturando...a Felizmina que faz tudo para me agradar e que vive orgulhosamente a raridade que é a sua monogamia e os seus seis filhos do mesmo homem - o Senhor Paulo, como ela se refere ao marido quando dele fala - pois a dita Felizmina não morreu, nem me matou a mim e ao prédio inteiro porque se calhar o deus a que reza nos protegeu ou talvez porque eu tivesse o sangue frio de agir e conseguir que a bilha de gaz a que ela - sabe-se lá como - pegou fogo não explodisse e não levasse tudo pelos ares eu e ela e os habitantes dos outros andares.
Seguiu-se Hospital Central de Maputo, muito dinheiro para subornar aqui e ali para eu poder entrar onde era proibido, levar apoio, comida, ânimo e fazer das tripas coração quando entrava na enfermaria dos queimados e só via desgraças, mulheres nuas queimadas em cima de lençóis sem soltar um ai. A Felizmina esteve internada 2 semanas e tal e acabou de se curar com mais duas semanas em casa.
Não relato pormenores porque de facto ainda não estou restabelecida da experiência.
A casa ficou cinzenta, tudo ficou uma desolação, e à medida que fui limpando fui debatendo comigo mesmo como e se haveria de aceitar a Felizmina e confiar nela outra vez.
A Felizmina ficou bem e já voltou a trabalhar, para espanto de muita gente que achava que eu a deveria ter posto na rua.
Tenho feito um esforço para aceitar o enorme acidente que provocou como episódio único, esquecer e andar para a frente.
Pelo meio vi o brutal esforço que um hospital antigo e colonial faz para manter alguns critérios de qualidade, remando contra a maré da ignorância e da estupidez. Eu explico: a Felizmina, no dia da saída do hospital (fui lá para assinar os termos da alta, já tinha andado atrás do médico cubano, de manhã muito cedo a pedir-lhe que deixasse a Felizmina ir para casa, que passava os dias a chorar, de tão deprimida, paguei estadia e medicamentos e organizei-lhe o transporte para casa) a Felizmina queixava-se que as enfermeiras eram más, que não deixavam levar as capulanas para o hospital a 'enfeitar' as camas, não deixavam usar roupa que não a do hospital, obrigavam a guardar tudo em armários fechados no corredor, nas mesas de cabeceira só uma garrafa de água, etc. etc. Tentei explicar-lhe que toda a roupa daquela enfermaria era esterilizada, o que garantia uma higiene à prova das bactérias que vinham de casa nas capulanas. Disse-lhe que na Europa e na América nas enfermarias de queimados também se seguiam essas regras - olhou para mim incrédula e discordou.
Repito que ela é ignorante e teimosa, o que às vezes torna o nosso convívio difícil.
As pernas que tinham tido queimaduras em segundo grau estão curadas e lisas, com manchas cor de rosa, que vão escurecendo, como ela tanto quer.
Escurecem devagar.
Mais rápido desde que eu a convenci que tem que apanhar ar nas pernas que não pode andar com meias de homem até aos joelhos a tapar as ditas manchas, que o ar faz bem.
Levei uma semana a convencê-la, pelas razões sobejamente referidas da sua teimosia.
E passou-se nisto um mês e meio.
Para mim depressa, para a Felizmina muito devagar.