se vai ao longe? ou nunca se chega? Em terras do Índico, vamos abrandar...
13
Jun 12
publicado por devagar, às 18:30link do post | comentar

Dizem que aqui há muito tempo, mas como conceito o tempo é absolutamente subjectivo. 

Sobretudo no mês que passou, em que não fiz entradas no blog, porque andei a digerir um acontecimento que me marcou profundamente, e pela negativa.

A Felizmina, que passa o dia a rezar, que é pilar da sua igreja, que é tão ignorante quanto teimosa, e que eu por gostar bastante dela vou aturando...a Felizmina que faz tudo para me agradar e que vive orgulhosamente a raridade que é a sua monogamia e os seus seis filhos do mesmo homem - o Senhor Paulo, como ela se refere ao marido quando dele fala - pois a dita Felizmina não morreu, nem me matou a mim e ao prédio inteiro porque se calhar o deus a que reza nos protegeu ou talvez porque eu tivesse o sangue frio de agir e conseguir que a bilha de gaz a que ela - sabe-se lá como - pegou fogo não explodisse e não levasse tudo pelos ares eu e ela e os habitantes dos outros andares. 

Seguiu-se Hospital Central de Maputo, muito dinheiro para subornar aqui e ali para eu poder entrar onde era proibido, levar apoio, comida, ânimo e  fazer das tripas coração quando entrava na enfermaria dos queimados e só via desgraças, mulheres nuas queimadas em cima de lençóis sem soltar um ai. A Felizmina esteve internada 2 semanas e tal e acabou de se curar com mais duas semanas em casa.

Não relato pormenores porque de facto ainda não estou restabelecida da experiência.

A casa ficou cinzenta, tudo ficou uma desolação, e à medida que fui limpando fui debatendo comigo mesmo como e se haveria de aceitar a Felizmina e confiar nela outra vez.

A Felizmina ficou bem e já voltou a trabalhar, para espanto de muita gente que achava que eu a deveria ter posto na rua.

Tenho feito um esforço para aceitar o enorme acidente que provocou como episódio único, esquecer e andar para a frente.

Pelo meio vi o brutal esforço que um hospital antigo e colonial faz para manter alguns critérios de qualidade, remando contra a maré da ignorância e da estupidez. Eu explico: a Felizmina, no dia da saída do hospital (fui lá para assinar os termos da alta, já tinha andado atrás do médico cubano, de manhã muito cedo a pedir-lhe que deixasse a Felizmina ir para casa, que passava os dias a chorar, de tão deprimida, paguei estadia e medicamentos e organizei-lhe o transporte para casa) a Felizmina queixava-se que as enfermeiras eram más, que não deixavam levar as capulanas para o hospital a 'enfeitar' as camas, não deixavam usar roupa que não a do hospital, obrigavam a guardar tudo em armários fechados no corredor, nas mesas de cabeceira só uma garrafa de água, etc. etc. Tentei explicar-lhe que toda a roupa daquela enfermaria era esterilizada, o que garantia uma higiene à prova das bactérias que vinham de casa nas capulanas. Disse-lhe que na Europa e na América nas enfermarias de queimados também se seguiam essas regras - olhou para mim incrédula e discordou.

.

 

Repito que ela é ignorante e teimosa, o que às vezes torna o nosso convívio difícil.

As pernas que tinham tido queimaduras em segundo grau estão curadas e lisas, com manchas cor de rosa, que vão escurecendo, como ela tanto quer.

Escurecem devagar.

Mais rápido desde que eu a convenci que tem que apanhar ar nas pernas que não pode andar com meias de homem até aos joelhos a tapar as ditas manchas, que o ar faz bem.

Levei uma semana a convencê-la, pelas razões sobejamente referidas da sua teimosia.

E passou-se nisto um mês e meio.

Para mim depressa, para a Felizmina muito devagar.

 


08
Set 11
publicado por devagar, às 11:45link do post | comentar | ver comentários (2)

Em Moçambique as mulheres e os homens são muito diferentes. E há muita gente e muitas instituições que tentam todos os dias diminuir a diferença. É muito difícil. Mas todos os dias tem que se tentar que as meninas não deixem de ir à escola, é que à medida que os estudos progridem as meninas vão desistindo, representando 2/3 dos drop-outs do sistema educativo. É brutal. Das meninas que iniciam a primária só 28,8% chegam ao fim. As que desistem da escola vão para casa trabalhar, porque à sua vida futura não fazem falta os estudos. As meninas não são valorizadas como os rapazes. E se é assim em muitos locais, aqui é muito assim - a taxa de analfabetismo entre as mulheres tem vindo a diminuir mas mantém-se alta: em 1997 era de 74,1% da população e em 2004 estava nos 66,2%. Notáveis mas insuficientes avanços.

A prática africana do lovolo (=bride's price) que 'faz parte da identidade individual e colectiva, ligando seres humanos e mortos numa rede de interpretações do mundo e num conjunto de tradições em contínuo processo de transformação'* está bem viva nas sociedades urbanas, incluindo Maputo, e legislação que combatia essa prática foi sendo posta de parte, porque inoperante. O lovolo leva à submissão da mulher ao marido, que a adquiriu, às vezes com grandes sacrifícios dele e da sua família, e o que se adquire é pertença, e dela faz-se o que se quer...

Esta é uma questão muitíssimo complexa, que cruza mal com a emancipação da mulher e cruza bem com a submissão cristã da mulher ao marido, a missionação teve implicações profundas numa mentalidade que já subalternizava o feminino. E as mentalidades mudam muito lentamente.

Devagar.

Ademais, a promiscuidade é comum, sendo usual o homem casado ter mais do que uma namorada - e nada por aqui é platónico. O grave problema de HIV em Moçambique é fruto também deste life style, e da prostituição que teima em cobrar preço sem camisinha (500 Meticais) e com camisinha (250 Meticais) com as mulheres a sujeitarem-se a tudo e a serem traficadas para além fronteiras.

Tudo isto a propósito da recente publicidade à cerveja laurentina, cujos outdoors levantaram ondas de protesto numa sociedade pós colonial onde as questões de racismo continuam a pesar. A pobreza cultural da imagem e do slogan e os protestos que gerou em vários sectores da sociedade, levaram as Cervejas de Moçambique a suspender a campanha.

Na época da responsabilidade social das empresas, e da primazia da imagem, ficava-lhes mal actuar ao nível baixo e promíscuo de uma sociedade que tenta inverter o status quo tão duro para a mulher. A pronta suspensão da campanha demonstra que quem todos os dias tenta remar contra a maré, acaba por atingir os resultados.

Ainda bem que há boas notícias.

 

 

*Estudos sérios da antropóloga Brigitte Bagnol sobre o assunto: Lovolo e espíritos no sul de Moçambique. Anál. Social, abr. 2008, no.187, p.251-272. ISSN 0003-2573.

Disponível na net em http://www.scielo.oces.mctes.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0003-25732008000200003&lng=pt&nrm=iso

 

 


24
Mar 11
publicado por devagar, às 18:08link do post | comentar | ver comentários (1)

De compras hoje de manhã pelo Maputo. A pedido insistente da Felismina (e agora que já tenho carro lá tenho que cumprir o prometido) fui ao mercado do Fajardo, à Av. do Trabalho, no Alto Mahé, zona altamente povoada de variadas etnias e onde o branco rareia.

Visitei uma confusão organizada, cheia de gente e de recantos especializados, uns mais escuros que outros, tectos baixos de assoalhadas improvisadas com chapas de zinco, paus e caniço, onde a Felismina se movimentou leve e conhecedora, e eu me deixei levar por cores e odores surpreendentes. O calor insuportável, mas se calhar só para mim, porque gentes de várias e asiáticas origens, bem cobertas e de vestes longas andavam por ali sem parecer sofrer os 34º que já marcava o termómetro.

 

Um mundo maioritariamente feminino, aí num ratio de 15:1, sendo que homens feitos eram poucos e ou eram condutores de carrinhas que descarregavam produtos importados da vizinha África do Sul, ou velhos inertes como estátuas, que haviam já voltado para o conforto do mundo das mulheres, porto seguro que lhes vai deitando o olho, oferecendo ajuda e comida diária.  Crianças eram imensas e bébes pendurados nas costas das mães também por lá andavam, impressionando-me sempre muito o facto de não de se lhes ouvir o choro.

Vende-se tudo aos montinhos e aos molhinhos.

Os molhinhos são as divisões que se fazem aos molhos de salsa, coentro e cebolinho - que moçambicana que se preze utiliza diariamente e em quantidade - espinafre, couve etc.

Os montinhos são para os outros produtos todos, do piri piri, à batata doce, que se expõe com criatividade.Os pequenos custam 5 ou 10 meticais, dependendo do produto, os médios 15-20 os maiores 25-30... e por aí.

O pobre compra ao dia e ao montinho, cujo preço se ajusta às parcas moedas da subsistência. O moçambicano pobre (a esmagadora maioria) vive com cerca de 18 meticais diários (50 meticais = 1€). Um montinho de 10 meticais não é propriamente barato. Um pão tipo cacete pode custar entre 5 e 7,5 meticais (o mais barato é mais estreito), e um saco com cerca de 200 gramas de amendoim moído custa 12 meticais, e com ele e algumas folhas de mandioca moídas no pilão se faz uma matapa capaz de alimentar uma família média moçambicana.

Hoje no Fajardo vi cachos de uvas vendidas aos montinhos de 10, 15 e 20 meticais... Os de 10 meticais teriam umas 10 uvas. Se transformarmos 1 quilo de uva em montinhos de 10 meticais fazemos um lucro superior ao que se consegue num supermercado que vende ao quilo, e que paga espaço, mão-de-obra e impostos.

O ciclo infernal da pobreza e da fome aqui vive-se devagar e aos montinhos.

 


12
Jan 11
publicado por devagar, às 18:51link do post | comentar | ver comentários (1)

Prestes a rumar a sul. Os sentimentos contraditórios das partidas. As malas com peso limitado e estiva difícil.

Nada de novo.

Hoje, a ultimar ajudas a familiares, entrei num grande espaço, um dos muitos que existem neste pequeno país. Enquanto aguardava resposta na recepção de entrada, reparei no esforço (exagerado?) de uma menina que pretendia que todos os clientes daquele espaço, logo à entrada, dessem dinheiro para a causa que representava. Havia música, ar condicionado, a menina apresentava-se com uma imagem cuidada.

Não gostei.

Achei mesmo uma violência (a roçar a promiscuidade?) que no local onde se entra para gastar dinheiro, alguém nos peça parte do dito, apelando a sentimentos de culpa, por se ter quando tantos há que não têm. Perguntei-me porque a administração do espaço permitia este assalto ao consumidor? Interroguei-me se seria  para passar a ideia de que naquele espaço havia uma consciência cívica de ajuda ao próximo, mas à custa da chateação ao cliente que entra no espaço?

Não sei.

Por cá, senti-me todos os dias bombardeada por uma neurose colectiva, que se liga à crise económica, à falta de dinheiro, ao aumento dos impostos, à falta de horizontes, ao FMI, ao desemprego, aos preços a subir, etc. A escassos dias do Maputo, não posso deixar de pensar na pobreza moçambicana e na alegria colectiva de um povo que anda devagar, e no bem que me vai fazer ver o pobre a pedir, ajudá-lo sem ter por intermediária uma menina pintada, com unhas de gel, muito rímel, sapatos de salto alto e muito descaramento.


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